Já dizia o poeta Murilo Mendes: “O
invisível não é irreal, o real é que não é visto”.
Alguém já lhe disse ter visto um lobisomem? Ou
você já deu de cara com ele? E se eu lhe disser que vi um? Quem me conhece de
perto sabe que não sou nada chegado a fantasiar coisas nem propenso a
sensacionalismo, tampouco a histórias da carochinha. E quanto à licantropia?
Leu ou ouviu algo a respeito? Antes, é claro, vamos ao fato ocorrido no ano de
1959, pouco a pouco ao cair da noite de um típico inverno paulistano, quando eu
residia num bairro da zona leste da cidade de São Paulo, de nome Vila Formosa.
Zeus
transformando Lyacon em um lobo, gravura
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Brincávamos na rua, eu e mais alguns meninos da vizinhança, a
jogar bolinhas de gude, bem em frente da casa de dois daqueles que comigo
tomavam parte na brincadeira, filhos de uma senhora chamada dona Sônia.
Ficávamos ali até a mãe de cada um pedir que entrasse (meninos e meninas
dormiam cedo naquele tempo). Eu, porém, permaneci um pouco mais, livre de
preocupação.
Concentrado, sozinho naquele entretenimento infantil, eis
senão quando a certa distância, vindo não sei de onde, apareceu um estranho
animal. Célere, ele descia o ponto mais alto do declive da rua em desabalada
carreira, tendo ao seu encalço alguns vira-latas dos arredores; pelo menos, um
daqueles cães vi que era da casa de uma linda garota, moradora daquela rua,
chamada Rosa.
Um lobisomem?! O bicho era bem maior que seus
perseguidores. A despeito de tamanho impacto, notei-lhe a expressão quase
humana, os olhos salientes e avermelhados quais os de um espavorido insano. À
distância, deu para ver-lhe o pelo espesso, do griséu ao negro, e a bonita
pelugem amarelada no peito.
Se a bizarra criatura estava cheia de pavor, imagine este que
vos narra! Tudo sucedeu depressa. Infelizmente, não vi ninguém que pudesse
testemunhar o insólito acontecimento. Nem sei como pulara a bonita cerca de
madeira da casa de dona Sônia, toda pintada de branco; e o portão só estava
encostado! Escondido num canto, de cócoras, trêmulo e imóvel, esperei pelo
pior.
De súbito, sequer um latido. Silêncio absoluto. Depois de
respirar fundo e adquirir coragem, fui ver por que a criatura não passara em
frente da casa. Ora! Os vira-latas e o bicho só podiam ter passado para o
terreno baldio — pensei —, um espaço em forma de “u” entre a residência da
menina e a da mãe de meus amiguinhos, sendo que a face da casa de fundo dava
para outra rua. Novo detalhe: entre a casa de d. Sônia e a de fundo havia
estreitíssima passagem para outro terreno baldio, local onde os meninos fizeram
dali um campinho de futebol. Onde se meteram os vira-latas, a apavorante e
apavorada criatura, se naquela estreita passagem só podia transpô-la apenas um
garoto magro de cada vez, e de lado?
Decorreram-se os anos, conheci o Espiritismo. Vindo à memória
aqueles incríveis instantes da infância, resolvi saber através da investigação,
do estudo, os porquês do extraordinário acontecimento. Que visão impressionante
aquela!
Lobisomem através dos tempos
Anúbis, deus egípcio antigo
dos mortos e moribundos
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Teria eu realmente visto o lendário e antigo personagem
mítico-sobrenatural? Se não, vejamos, remontemos às antigas civilizações.
Acreditava-se na Antiguidade que homens podiam se transformar em lobos.
Egípcios adoravam Anúbis, ou Hermanúbis, deus com cabeça de chacal; gregos
reverenciavam o Lobo-Zeus; romanos criam na existência de outro canino,
Cérbero, para eles, o “guardião do Inferno”; na Idade Média, falava-se de
feiticeiros que também se transformavam em lobos.
Cá entre nós: você acredita mesmo que um homem pode se
transformar em um animal em noite de lua cheia conforme apresentam novelas e
películas hollywoodianas da rentável indústria exportadora de violência e
terror? Penso que você, que nos honra com a sua leitura, “não compraria gato
por lebre”, não se impressionaria com superstições do imaginário popular.
Entretanto, há certa enfermidade que mexe com a imaginação e
causa repulsa, preconceito: a hipertricose. De origem genética, a
hipertricose apresenta curioso sintoma: o de crescimento de pelos em todo o
corpo. Segundo a Medicina, essa doença provoca mudanças no organismo e está
visceralmente ligada a um transtorno nas glândulas suprarrenais. Doença muito
antiga, confundem portadores da hipertricose com licantropos.
Licantropos, ou licomaníacos, “alienados”, para a Ciência,
sofrem de licantropia. Os psiquiatras veem apenas uma doença mental cujos
pacientes se julgam um lobo, ao portar-se como tal ou outro bicho (zoantropia).
É comum zoantropos serem acometidos de licantropia, ou licomania. Diga-se a
propósito, assim como há licantropos, há indivíduos que sofrem de outra curiosa
psicose: a teomania, ou seja, tendência que suscita fanatismo religioso, ou
psicopatia em que o paciente se acredita inspirado, ou possuído, por
divindades, por Jeová, o deus bíblico, por Cristo, considerado deus pelos
cristãos.
Já dizia o poeta Murilo Mendes: “O invisível não é irreal, o
real é que não é visto”. O Espiritismo não tapa o sol com uma moeda, ou, se o
desejar, “com a peneira”, e não transige com superstições. Os ensinamentos
espíritas devassaram o invisível, e casos notáveis, ditos enigmáticos, postos
no âmbito do fantástico, do sobre-humano, da milagraria; ele prova por a
mais b que todos esses fatos se explicam, por mais estranhos que nos
pareçam.
Essas ocorrências pedem, sim, esclarecimentos científicos,
pois, se acontecem, logo fazem parte da Natureza, pertencem à Criação.1 Tudo o que se recusou como
extraordinário, acima do saber humano, agora se percebe por meios irrecusáveis.
Por isso, o Espiritismo, ciência sublime, acima de tudo, seus pesquisadores
nunca deixaram de empregar critérios científicos. A fé espírita, não se resume
à fé cega, a que, por falta de discernimento, tanto pode admitir a mentira
quanto a verdade.
Obsessor e obsidiado
De volta ao dito cujo, uma vidência ou mesmo, quem sabe, um
caso de aparição tangível, ou materialização de alguma Entidade sofredora? Não
posso garantir. Veja, na oportunidade, eu era apenas um garoto de dez anos.
Poderia ter sido, sim, um encarnado cujo perispírito perdeu o
característico, por influência de um desencarnado, um Espírito
obsessor, apresentando aquele aspecto físico, profundamente transfigurado numa
forma animalesca. Aventemos ainda a possibilidade de ter sido o próprio
obsessor nas mesmas condições, com idênticas características visíveis,
palpáveis. No entanto, de uma coisa pode estar certo: homem nenhum se
transforma em lobo, em vampiro, em bode, em porco, em mula-sem-cabeça ou no que
quer que seja em noite de lua cheia ou em qualquer noite.
A licantropia pode acontecer a
quem faz o mal ao próximo.
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A licantropia pode acontecer a quem faz o mal ao próximo.
Possível candidato, a presa fácil de si mesmo, e, por conseguinte, de Entidades
inimigas, será aquele que se perverteu no crime; o que abusa da inteligência;
quem mercantiliza o próprio corpo, disseminando pornografias; quem faz uso de
bebidas alcoólicas, maconha, crack, cocaína etc.2
Há cura? Há! Mas somente para os que a desejam. A cura
acontece através da prática da Lei de Amor e Caridade, ensinada e exemplificada
por Mestre Jesus, e não por meio de exorcismos, de rezas decoradas,
repetitivas, mediante ostentação em ato público ou particular.3 A cura é discreta, sem alarde,
processo lento, com auxílio de passes e irradiações amorosas, a induzir o
obsessor, ou obsessores, à prática do bem, sobretudo sugerindo ao obsidiado a
evangelizar-se, a reformar-se, tornando-se moralmente melhor.
O Espírito e seu
corpo fluídico, o perispírito, nunca retrogradam (não confundir zoantropia com
a metempsicose dos budistas e hinduístas); o perispírito é que
degrada como já vimos. Não há nada de errado com caninos do tipo canis
lupus (lobos), com felídeos, do tipo felis cattus domesticus de
cor preta (gatos pretos), com quirópteros hematófagos (vampiros), com aves
estrigiformes (corujas) e demais criaturas aladas como corvídeos (gralhas e
corvos), com catatidiformes (urubus). Todos animais são dignos de nossa
consideração e amor, todos somos filhos de Deus, e para Ele caminhamos.
Licantropia, em outras palavras, trata-se de um estado
mórbido-mental, causado por um obsessor (um ou mais supostos inimigos). Por
sugestão hipnótica, ele pode persuadir alguém (suposta vítima), mesmo não
pertencendo mais a este mundo, a se transformar, por vingança, num ente
animalesco.4
O Ser Humano, ser
à parte, é deveras curioso! Às vezes, ele desce tão baixo ou pode se elevar
tanto! — segundo resposta da questão 592 de O Livro dos Espíritos.
Pois é, meu amigo ou minha amiga: se os chamados animais irracionais tivessem
consciência moral dos próprios vícios e de todo erro, se cometessem
desregramentos, atos de vandalismo, de licenciosidade, certamente haveriam de
dizer: “é simplesmente humano” — tal como dizem os que se consideram racionais:
“É simplesmente animalesco”.
__________________________________________________
1 KARDEC,
Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Tradução Herculano Pires.
62. ed . São Paulo: Lake — Livraria Allan Kardec Editora, 2001. Capítulo 1.o ,
item 5, página 39.
2XAVIER, Francisco C. Nos
domínios da mediunidade. Pelo Espírito André Luiz. 22. ed . Rio de Janeiro:
Federação Espírita Brasileira (FEB), 1994. Cap. 23, p. 217 e 218.
3KARDEC,
Allan. O livro dos espíritos. Tradução Herculano Pires. 62. Ed. São
Paulo: Lake — Livraria Allan Kardec Editora, 2001. Cap. 9.o,
questão 473 e 474, p. 185.
4Kardec
escreveu um artigo na Revista Espírita, Jornal de Estudos Psicológicos,
de 1865, s/ed., São Paulo, Editora Cultural Espírita Ltda., s/d, pág. 331, em
que analisa interessante caso de licantropia que consta da Bíblia, referente a
um antigo rei da Babilônia, uma obsessão grave ou, melhor
dizendo, subjugação, termo mais bem apropriado, segundo Kardec.
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