Davilson Silva-
Salvar-se, segundo Jesus, significa
cumprir o mandamento da Lei Maior, o qual se resume no amor irrestrito a todas
as criaturas, ao próximo, aos mais próximos.
“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e as línguas dos
próprios anjos, se eu não tiver caridade, serei como o bronze que soa e um
címbalo que retine.”¹ Assim iniciou Paulo de Tarso uma de suas mais
coerentes e admiráveis cartas à comunidade de Corinto, na Grécia do seu tempo.
No tocante a essa virtude, o sacerdócio organizado que tomou
como sua a posse da verdade absoluta, desde o século quarto, tem também escrito
as suas cartas. Em uma de suas últimas cartas circulares pontifícias, datada de
sete de julho de 2009, a Caritas in Veritate (Caridade em
Verdade), parágrafo 1.º, transparece a esdrúxula doutrina da “redenção pelo
sangue de Cristo”, que, de início, afirma: “A caridade, na verdade, que Jesus
Cristo testemunhou com sua vida terrena e, sobretudo, com a sua morte e
ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento
de cada pessoa e da humanidade inteira”.
Verdade deles
Noutro trecho dessa encíclica, no seu parágrafo 2.º, afirma-se
ainda que “a caridade há de ser compreendida e praticada sob a luz da verdade”.
Quem ler examinando o desenrolar do texto, logo entenderá que essa “verdade”,
obviamente, é a do sacerdócio organizado. Ou seja: quem não adere à verdade da
salvação pela fé, não pode se salvar. (A referida encíclica encontra-se à
disposição na Internet.)
A respeito do conceito de “salvação”, o próprio Jesus jamais
afirmou, sequer insinuou tamanho absurdo. Sua doutrina se resume no maior de
todos os mandamentos² e nada mais. Salvar-se, segundo Jesus, significa cumprir
o mandamento da Lei Maior, o qual se resume no amor irrestrito a todas as
criaturas, ao próximo, aos mais próximos.
Sem o magno compromisso moral que recomenda “amor a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”, a criatura encarnada (e
desencarnada!) nunca terá em si o Reino de Deus. Lembremo-nos de que esse reino
não pertence a este mundo nem possui forma exterior, sendo essencialmente um
estado de paz, de consciência tranquila. Tal sentimento de bem-estar, sublima-o
o dever cumprido pela ação generosa em proveito de alguém ou de alguns, ou de
muitos.
Não passa de mentiroso
O bem ao próximo, aos mais próximos, enfim, a tudo o que cerca
ou envolve os seres vivos, a natureza, dá esse estado de espírito e torna o
benfeitor o mais feliz dos seres mesmo ante os mal-agradecidos, os invejosos,
os caluniadores, ante todas as vicissitudes da existência. Não é possível! Se
alguém disser que traz consigo esse reino, e ao mesmo tempo desrespeita a crença
dos outros, cria barreiras como a do preconceito, da má vontade, julgando,
condenando, denegrindo nomes e instituições respeitáveis. Não passa de um
mentiroso.
O que mais a intolerância e o preconceito religioso produziram
foram injustiças, crueldades. Os atos do Tribunal do Santo Ofício, as Guerras
Santas que o digam, em que pese Jesus ter deixado bem claro o segundo
mandamento, além do amar a Deus de todo o coração, de toda a alma: “(...)
Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 13, 30-40).
No entanto, religiões e seitas ditas cristãs valem-se do
engano Paulino referente à caridade e à fé, antepondo esta àquela, a fim de
manter o dogma da “graça e salvação pela fé”, em contraste com a moral do
Evangelho. Por conta desse e de outros pontos de doutrina, estranhos ao
pensamento do Mestre Nazareno, ainda por cima definiram a Igreja como a “única
coluna e baluarte da verdade”, com base na primeira epístola do mesmo Apóstolo
(I.a Timóteo, 3,15).
É por essas e outras que esse Cristianismo sentencioso colide
com “agora estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade permanecem,
sendo a mais excelente a caridade”, do próprio Paulo (Coríntios 13, 13); com
“assim também a fé, se não tiver obras, por si só está morta”, do Apóstolo
Tiago (Tiago 2,17).
Caridade, e não verdade de a, de b ou de c
A caridade, como a entende Jesus, e confirmada pela Doutrina
Espírita, é e sempre será o único meio de salvação, e não segundo a verdade
de a, de b ou de c. Por sinal, as modernas edições bíblicas
astuciosamente substituíram o termo caridade pelo termo amor,
ofuscando-lhe o brilho do sentido dado pelo Mestre. Por isso, segundo o
Espiritismo, ela não se limita a tão-somente favorecer os pobres com coisas
materiais; sob o ponto de vista espírita, caridade vai desde o ato de doação de
“uma moeda” até o de se “perdoar o inimigo”. Perdoar o inimigo resume-se em
caridade moral por ter como princípio a Humildade, a maior de todas as
virtudes, daí Jesus colocá-la no primeiro item das Bem-aventuranças, durante o
Sermão do Monte (Mt. 5,3). 3
Salvação, conforme a Doutrina, não se relaciona a “penas
eternas” nem com a salvação de supostas tentações de seres infernais, nem com
inferno. O Paulo — não o da carta aos efésios (Ef. 2,8) ao escrever: “pela
graça sois salvos mediante a fé”, e sim o Paulo aos romanos (Rom. 2,6), “Deus
retribuirá a cada um segundo as suas obras” — compreendeu que a salvação só
acontece pela prática do bem, por atos provenientes do sentimento caridoso.
“Obras”, aqui no caso, é mesmo o que entendemos como caridade, ou seja, o
conjunto de todas as virtudes da alma, porque dela resulta a benevolência com
todas as criaturas, e está ao alcance de todos: do ignorante ao sábio, do pobre
ao rico, independente de qualquer crença particular.4
Nenhuma filosofia, religião ou seita possui o privilégio da
verdade absoluta. Salvação, quer dizer evolução; só diz respeito a nós mesmos;
sem ela, estacionamos em erros e sofrimentos. Se não combatermos nossas más
tendências, se não superarmos vícios e defeitos, jamais evoluiremos e, por
conseguinte, tornar-se-á cada vez mais difícil o Reino do Céu em nós, a
bem-aventurança, ou felicidade perfeita. Esta, só a conseguiremos à custa de
uma profunda reforma de temperamento, e Jesus já fez a Sua parte; Ele já
ensinou como bem fazê-la.
Fiquemos, portanto, com esta belíssima ilação do Espírito
Emmanuel:
(...) Salvar, em legítima significação, é
“livrar de ruína ou perigo”, “conservar”, “defender”, “abrigar”, e nenhum
desses termos exime a pessoa da responsabilidade de se conduzir e melhorar-se.
Navio salvo de risco iminente não está exonerado de viagem, na qual enfrentará
naturalmente perigos novos. E doente salvo da morte não se forra ao imperativo
de continuar nas tarefas da existência, sobrepujando percalços e tentações. (...)
Pedro, salvo da indecisão, é impelido a sustentar-se em trabalho até a
senectude das forças físicas. Paulo, salvo da crueldade, é constrangido a
esforço máximo, na própria renovação, até o último sacrifício.5
__________________________________________________
.1 KARDEC,
Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Tradução Herculano Pires.
62. ed. São Paulo: Lake — Livraria Allan Kardec Editora, 2001. Capítulo 15, do
item 1 ao 3, página 197.
.2_____. _____. Cap. 15, item 4 e 5, p. 199.
.3_____. _____. Cap. 7.º, do it. 1 ao 3, p. 199.
.4_____. O livro dos espíritos. Trad. J. H.
Pires. 62. ed. São Paulo: Lake, 2001. Questão 886, p. 292.
.5 XAVIER,
Francisco C. Palavras de vida eterna. Pelo Espírito Emmanuel. 13.
ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira (FEB), 1989. Tema 153, p.
322.
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