Um belo exemplo de piedade*

Davilson Silva-

Contam que desprendida e corajosa enfermeira inglesa de 34 anos de idade, de nome Florence Nightingale, decidiu partir da Inglaterra para a Crimeia, ela e mais algumas voluntárias.

Só a Alma superior volta toda a sua atenção para o que é fundamental: a piedade e humildade segundo padrões fraternais apresentados por Jesus de Nazaré, corroborados pelo Espiritismo — um sentimento predisposto a desejar o bem de outrem sem condicionante, algo fora do comum no mais alto grau.

Guerra da Crimeia , o desembarque das tropas aliadas no Mar Negro
verdadeiro amor referido por Jesus e ratificado pela Doutrina Espírita resume-se no sentimento por excelência do ser racional, dotado de livre-arbítrio, a faculdade de tornar efetivo ou não o que foi determinado ou prescrito, ou o que nos obrigamos perante nós mesmos pela ação e vontade. Quem ama, possui a quietude do espírito sensato, corajoso e inconfundível, ao prosseguir firme na ventura ou desventura como uma bússola em plena tempestade. Oh, bendito sentimento que move ao bem do próximo, ainda que em dadas circunstâncias aparentemente contraditórias!

Pode-se exercer o amor à feição da caridade moral em quaisquer ocasiões. O momento máximo do amor ao próximo por amor a Deus, às vezes, nos surpreende mediante curiosos aspectos particulares. Eis, a seguir, um belo exemplo de comiseração humana.

Tudo ocorreu há cento e cinquenta e seis anos, na Península da Crimeia, Rússia. Ingleses e russos enfrentaram-se ferozmente por causa de impetuoso motivo: ambos desejavam obter matéria-prima para suas indústrias e compradores para seus produtos manufaturados. A Rússia queria uma saída para o mar e, nesse caso, a França uniu-se à Inglaterra para conter o avanço das tropas do Czar Nicolau I, pelo Oriente, através dos estreitos de Bósforo e Dardanelos, região pertencente ao Império Otomano. Portanto, estava decretada a Guerra da Crimeia.

Da Inglaterra para a Crimeia

Florence Nightingale (1928/1910)
Data: 21 de outubro de 1854... Certo combate da história dessa guerra começou. Contam que desprendida e corajosa enfermeira de 34 anos de idade, chamada Florence Nightingale, decidiu partir da Inglaterra para a Crimeia, ela e mais algumas voluntárias, com o propósito de ajudar feridos que morriam à míngua por falta de bons hospitais. A Crimeia situa-se na península da Crimeia, costa norte do Mar Negro. 

Em que pese o exército britânico possuir bastante fuzis modernos e precisos, navios e trens dos mais velozes para transporte de tropas, além de alimentos e remédios, estava desatualizado quanto à mão-de-obra médica. Por causa disso, a valorosa Florence empenhou-se por remitir o sofrimento dos semelhantes, fossem estes ingleses ou não fossem.

Notícias e mais notícias de funestas ocorrências eram divulgadas pela imprensa inglesa, muitos feridos acabavam morrendo em hospitais militares. Se da parte britânica e seus aliados franceses, turcos e sardenhos tinha organização e melhores condições, da parte russa, só carência e falta de recursos. No entanto, havia quarenta anos, o exército inglês não dava sequer um tiro em inimigos, e o número de baixas por morte ou ferimento aumentava, apesar das vantagens.

Um jovem soldado inglês teve a felicidade de permanecer sob o amparo da célebre e bondosa enfermeira e sua valorosa equipe. O soldado sofrera profundo ferimento no pescoço, causado por golpe de baioneta em pleno combate corpo a corpo, numa batalha campal em Inkerman, onde o número de mortos e feridos foi impressionante. Enquanto convalescia no hospital militar de Scutari, o jovem aprendeu a produzir belíssimas bolsas de contas; descobriu um meio de combater a tristeza, a inércia.

Certo dia, alguém veio ver os feridos e doou um saco de contas coloridas ao moço, tinha sabido antes que o convalescente possuía habilidades manuais, vocação para artesanato. Desde algum tempo, o soldado recobrava a saúde naquele hospital, conseguira sobreviver ao grave ferimento nas duas cordas inferiores, as verdadeiras cordas vocais por ser as que mais influem na fonação.

Não se rendia

A impossibilidade de falar representava-lhe às vezes um verdadeiro inferno, por isso ele sentia profunda angústia. Mas o soldado não se rendia ao sofrimento. Embora tudo lhe fosse sombrio, o moço procurava manter-se confiante, ainda que suportasse a falta de higiene, a miséria, o mau cheiro (isto, antes da chegada de Florence).

Algum tempo depois, uma visitante se sentiu atraída por uma das bolsas confeccionadas por ele. Além de elogiar o produto de seu trabalho, perguntou quanto custava e o comprou. Imensa alegria o moço sentiu, precisava se expandir, de modo que chamou a atenção de uma enfermeira — afinal, era a primeira vez que a fisionomia mudou desde que foi internado.

“Nossa!”, observou a voluntária. A enfermeira admirou-se por vê-lo tão contente e se sentiu dominada por intensa curiosidade. A colega da notável enfermeira-chefe, a que inspirou o suíço Henry Dunant a criar a Cruz Vermelha Internacional, quis logo saber o motivo de tanta euforia, assim que atendeu a um outro ferido recém-chegado do campo de batalha.

“Veja, enfermeira, que sorte a minha”, o rapaz esforçava-se por falar, “aquela dama comprou uma bolsa!”, podendo-se apenas ouvir sons guturais, emitidos de um jeito horroroso, ininteligível. A voluntária, porém, alegrou-se por ele; fitou-o enternecidamente, mas, ao mesmo tempo, sentiu um aperto; no fundo, ela desejava poder-lhe contar algo... Faltou coragem.

Ato contínuo, de seus olhos, sentida lágrima rolou e ela se inclinou para acariciar a dourada cabeleira do soldado: “Sinto-me feliz por você, mas não compreendi uma só palavra do que disse... sou surda... por que não escreve?”, propôs isto e lhe ofereceu papel, pena e tinteiro. A fisionomia do rapaz indicou profundo sentimento de lástima, daí escrever: “Como pode alguém ter tanto ânimo, tanto amor, padecendo de tão grande aflição?!”

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*Texto criado sob inspiração de diminuto conto que consta da série Antologia da Literatura Mundial, de um autor desconhecido, Tomo I, adaptado segundo fatos da biografia de Florence Nightingale (1820/1910) e da história da Guerra da Crimeia (1854/1855).

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