Língua, centelha divina do verbo

Davilson- Silva
-
O Espírito Emmanuel declarou que a língua é detentora da centelha divina do verbo.

Um homem resolvera ir a um Centro. De há muito, tinha ele persistente curiosidade, grande vontade de dirimir certa questão: “O Diabo seria mesmo espírita?”, inquiria de si para si mesmo. Tomando coragem, resoluto, entrou no centro de terço na mão. Cheio de dúvidas acompanhadas de enorme temor, rezou por entre os dentes a salve-rainha, o padre-nosso, o credo e seguiu em frente.

Trêmulo, discretamente ele fez o sinal-da-cruz antes de preencher uma ficha na entrada. Voluntários amorosos, fraternos,  recepcionando-o com alegria, submeteram-no à entrevista e o encaminharam à câmara de passes; enfim, ele fez tudo de acordo com a rotina da casa. Em seguida, o homem de meia-idade entrou na sala de palestras, espaço silencioso, simples, aconchegante, onde apenas se ouvia baixinho a trilha sonora de grandes compositores da música clássica universal. Ficou muitíssimo surpreso com tudo, ainda mais quando fizeram comovida prece a Deus e a Jesus antes das considerações a respeito do tema que versava sobre reforma íntima.¹ O orador, nessa oportunidade, concluiu a sua palestra dizendo que só havia uma maneira de se identificar o verdadeiro espírita, ou verdadeiro cristão: pela sua transformação moral.

Voltou ao centro

Na semana seguinte, o homem voltou ao centro todo entusiasmado. Dessa vez, trouxe uma gaiola coberta com uma capa: foi o primeiro a entrar no recinto de palestras e a sentar-se bem em frente da tribuna, na primeira fileira de cadeiras. Isso se tornou um mistério que se repetia até que, numa noite, no fim dos trabalhos, um frequentador da casa indagou-lhe:

— Desculpe. O que o senhor traz sempre dentro dessa gaiola? Algum pássaro?

— Ah, sim, doutor, pois não! O Olegário...

Com todo o cuidado, o homem abriu bem devagarzinho o zíper da capa da gaiola. Pronto. Mistério desvendado. Dentro da clausura de arame tinha de fato algo revestido de penas, só que um belo exemplar de uma ave pertencente a diversas espécies de psitaciformes, psitacídeos, em especial do gênero Amazona: um papagaio!!!

— O Olegário fala cada nome feio! É um tremendo boca... boca, não, digo, bico sujo. Saiba o senhor que, certo dia, eu...

— Perdão, eu ainda não entendi...

De sorriso contrafeito, interrompeu o interlocutor. Sem que percebessem, cercaram-nos alguns outros curiosos.

— Tenho vindo aqui com o Olegário, doutor, na esperança de que ele pare de uma vez por todas de falar palavrões e faça a tal da reforma íntima, explicou o homem.

Mediante essa ocorrência, principiamos a dizer, referente a repertório vocabular, que toda frase que emitirmos sempre indicará o nosso grau de espiritualidade. O caráter de nossas palavras, mola realizadora, testifica o valor da tendência dos nossos pensamentos e sentimentos. Por isso, disse Mestre Jesus: “O que sai da boca é do que está cheio o coração”.² Quer dizer, o que sai do coração humano, sede dos sentimentos, das emoções, da consciência, são os sons articulados pelas cordas que produzem a voz humana, formando palavras movidas pela vontade de exprimir ideias ligadas ao conjunto das qualidades morais de cada indivíduo.

Cuidado com as palavras

Os discípulos do Evangelho são os que mais deveriam ter cuidado com a aplicabilidade das palavras. Quem abraçou a causa do Mestre não pode descurar também das expressões. Neste passo, o Espírito Emmanuel declarou que a língua é detentora da centelha divina do verbo.³ O problema está em não sabermos utilizá-la como se deve, em não lhe darmos proveito edificante.

Não estamos, porém, dizendo respeito a espetáculo vernacular nem a exibicionismo ostentoso de erudição afetada e livresca, ao falarmos de uso proveitoso do verbo. Assuntos positivos, tom de voz brando, críticas construtivas e advertência sem levar as coisas para o campo pessoal fazem parte do contexto digno de um genuíno seguidor do Mestre. No entanto, há um tremendo contrassenso: o palavreado chulo, a gíria e até as expressões ácidas entre os que se valem do nome de Jesus, quando estes teriam que ter uma linguagem de boa qualidade, e não ordinária, típica dos sujeitos mal-educados.

Evitemos, pois, o emprego de certas gírias e interjeições grosseiras à guisa de pretensa modernidade para se ser mais simpático, principalmente aos jovens. É indispensável o aprimoramento, a iluminação e o enobrecimento da palavra onde quer que estejamos. A reforma íntima propõe-nos resistência aos vícios, imprescindível retificação do nosso caráter no corretíssimo combate aos defeitos morais. Corrijamos os pequenos vícios como os do modo inadequado de nos exprimirmos. Se não conseguimos vencer os vícios mais fáceis, dar-lhes combate, como poderemos conseguir vitória sobre os mais difíceis?!

Em regra geral, carecemos todos de medidas retificadoras, e a reforma íntima, portanto, deve começar pelo que sai da boca. O homem ficou sabendo que o mencionado coadjuvante da catequese igrejeira nada tem a ver com o Espiritismo além de fazer-se ciente do que é um centro espírita. Ele entendeu que as casas realmente espíritas são lugares de gente séria, caridosa; ali, ele só viu disciplina, respeito e amor ao próximo. Sentindo-se tão bem, achou que, num lugar como aquele, poderia resolver o seu “problema”. É claro que o louro, enquanto ser vivente empenado e imitador da voz humana, jamais entenderia o sentido de reforma íntima... Não afirmam ser o indivíduo produto do meio? Neste caso, podemos também dizer que a ave em apreço era produto do seu meio, ou seja, o ambiente da residência de quem a acolheu.

__________________________________________________
1O tema da palestra foi baseado nas seguintes obras: O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. 17, it. 3 e 4, 7 e 8; O Livro dos Médiuns — parte primeira —, cap. 3.º, it. 26 a 28;  e  O Espírito de Verdade, tema 76, 84  e 92.
  
2Lucas, capítulo 6, versículo 45.

3XAVIER, Francisco C. Pão Nosso  (Espírito Emmanuel). 10. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira (FEB), 1984. Tema 170, p. 351.


No comments :

Post a Comment